quinta-feira, 21 de julho de 2011

Crianças consomem crack a céu aberto nas ruas do Pelourinho

Menores de Salvador se drogam em um dos principais pontos turísticos da cidade. Muitos buscam abrigo em casarões históricos abandonados.




Eles são exatamente como Jorge Amado descreveu: divertidos para encarar a pobreza extrema com a conformidade de quem não tem escolha. Astutos para vencer as dificuldades que são encaradas a cada minuto - seja fome, frio, falta de onde dormir. São, sobretudo, e antes de qualquer outro adjetivo, crianças. Excluídas por um sistema cruel que não vê a miséria na esquina de baixo - e, quando vê, disfarça, finge não enxergar.


Eu conheci os Capitães da Areia. Em apenas três dias de visita ao Pelourinho, vivi o que os turistas não conheceram nos guias. Não estava longe. Bastava desviar os olhares das lojas de souvenir ou das igrejas impressionantemente belas. Bastava dirigir os ouvidos concentrados nos batuques de influência africana para o riscar rápido de um isqueiro, a poucos metros dali.Eu vi e ouvi. O pedido de socorro de Washington, 15 anos: “Mãe, me tira daqui!”. Vi quando ele fez questão de mostrar o lugar onde dorme. Descendo ao lado de um antigo batalhão da polícia, a menos de 50 metros de onde a Bahia comemora o São João. É no Plano Inclinado, uma ladeira por onde escorre a urina dos integrantes da festa de que eles não participam.


Ouvi o rap de Branco, 16 anos, tentando explicar o inexplicável: por que tanta desigualdade? "Sair da rua um dia é a meta final / Viver o pobre sem ter na mente é o mal".


E vi e ouvi Ivan, a pura malandragem de um sujeito acostumado às ruas, do alto da experiência de seus 15 anos - embora aparente menos. "Não cresci por causa da miséria", matraqueia. O vi sendo acordado aos socos por um companheiro que não se continha de riso enquanto ele se levantava, chorando, aos berros de que aquilo era um desrespeito a um colega de rua. E o vi, em questão de minutos, se transformar na pessoa mais afável do mundo quando integrantes do Projeto Axé o levaram para resolver um problema imediato: matar a “larica” com arroz, feijão, peixe, farinha e muita pimenta.


Ivan é um dos 15 jovens que ainda vivem nas ruas e são atendidos pela ONG criada em 1990 por Cesare La Rocca. O italiano septuagenário – 44 anos no Brasil – se encantou pelo país numa viagem à Amazônia, quando sonhava em estudar para a carreira diplomática. Foi num estalo que decidiu largar a vida "de sujo burguês em Florença" - suas próprias palavras - para dedicar-se à causa da criança e do adolescente. "Como embaixador, diplomata, eu poderia ser útil aos interesses particulares do meu país apenas. Naquela época, 26, 27 anos, eu sonhava em ser um grande mudador do universo, da humanidade".


Graças a esse altruísmo, um tímido apoio de governos e a generosa contribuição de entidades variadas, Cesare e sua equipe já conseguiram atender mais de 13 mil crianças no Projeto Axé, com diretrizes respaldadas por uma das leis de que o Brasil mais se orgulha, mas está longe de respeitar: o Estatuto da Criança e do Adolescente.


Se a legislação fosse cumprida, Washington e Ivan, assim como os gêmeos Quente e Frio – um dos quais o autor dos socos que acordaram o colega na rua, mas que a semelhança física impede de identificar – estariam na escola. Mas estão nas ruas. E nos bolsos, em vez de lápis ou caneta, carregam um instrumento artesanal, criado a partir de um pedaço de antena de carro e com a triste finalidade de destruir a si próprio: um cachimbo de crack.


Uma pesquisa nacional feita pelo Observatório Brasileiro de Informações sobre Drogas (Obid), em 2003, revela quais são os principais motivos para consumo de drogas entre crianças de rua de 10 a 18 anos: 19,8% delas usam por diversão. E 8,9% para “esquecer a tristeza”.


Washington tem família. Ivan também. Quente e Frio perderam a mãe recentemente, mas o pai é vivo – assim como a irmã, que também mora na rua e, no dia em que nos vimos, dividiu com os irmãos uma única bisnaguinha que não faria nenhuma diferença em qualquer café da manhã da Cidade Alta da Bahia.


O Centro Histórico de Salvador é uma terra historicamente desigual. O Pelourinho, que dá nome ao bairro, era um poste usado para acorrentar seres humanos, sobretudo escravos, aos olhos de todos. Era um recado aos que desobedeciam as regras de seus donos, os ricos moradores dos casarões da redondeza. Mais do que isso: era uma triste exposição do contraste social que dura até hoje, tantos séculos depois.


Abandonadas, essas imensas construções foram restauradas apenas na área turística, onde luxuosa loja de joias ou vendinhas de produtos para gringos se espremem entre ruas degradadas e esquecidas. Na década de 90, o governo promoveu algumas iniciativas para revitalizar o Pelourinho. Onde o dinheiro do Estado não entrou – por impasse com os proprietários ou com o Iphan, o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, que tombou os casarões – as paredes frágeis como farinha correm o risco de desabar sobre os moradores de rua que insistem em se abrigar ali.


É a esses casarões que muitos brasileiros em situação de rua recorrem para, entre outras necessidades, consumir drogas. (Sim, consumir drogas é uma infeliz necessidade para quem é dependente químico). E entre ficar nas ruas e encontrar proteção nas construções que podem desabar a qualquer momento, Washington, Branco e seus amigos preferem estar ali. No meio das ruínas de onde só houve riqueza no passado, eles arruínam seus presentes e, se nada for feito, a perspectiva de qualquer futuro.


Fonte: G1 Profissão Repórter


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