Episódio de Julio Verne ajuda a realçar a inconsequência do vale-tudo
adotado pelo governo, de olho em 2014.
Pensando no imediatismo e na
inconsequência que vêm marcando a condução da política econômica no país, por
conta da precoce fixação do Planalto na reeleição, lembrei-me de uma passagem
marcante de um livro que li há mais de 50 anos.
Sou da época em que crianças ainda liam Julio Verne. Assim
mesmo, com prenome aportuguesado, como o autor era conhecido por aqui. “A volta
ao mundo em oitenta dias”, publicado em 1873, é um dos seus livros mais
famosos. Conta as aventuras de Phileas Fogg, um solteirão inglês rico e
excêntrico, que aposta com outros sócios de seu clube que poderia fazer uma
viagem ao redor do mundo e retornar a Londres em apenas 80 dias. Bastam dois
parágrafos curtos para situar, no enredo, o episódio de que me lembrei.
Fogg cruza a Europa e a Ásia, atravessa o Pacífico e segue, por
trem, de San Francisco a Nova York. Mas não chega a tempo de embarcar no navio
em que pretendia retornar à Inglaterra. E aí se vê em dificuldades. Os navios
que estavam prontos para zarpar não eram suficientemente rápidos. Os que eram,
não sairiam a tempo de Nova York. Mas Fogg afinal descobre o Henrietta, um
cargueiro que parecia adequado, prestes a partir vazio para Bordeaux. Era um
navio típico do período de transição da navegação a vela para a vapor. Já tinha
propulsão a vapor, mas ainda era dotado de velas. E, afora o casco de aço, a
caldeira e a máquina a vapor, era todo de madeira.
Fogg embarca no Henrietta e consegue desviá-lo para a
Inglaterra, graças a um motim por ele fomentado. Mas a travessia acaba tendo de
ser feita em meio a uma tempestade. E logo fica claro que o estoque de carvão
do navio, dimensionado para uma travessia calma de Nova York a Bordeaux, era
insuficiente para a viagem a todo vapor, em mar revolto, que estava sendo
empreendida.
É nesse ponto que vem o episódio que me veio à mente (capítulo
33, para quem se interessar). Com o carvão prestes a acabar, Fogg convence o
capitão, a quem o navio pertencia, a lhe vender o Henrietta. E, para manter a
pressão da caldeira, ordena que todas as partes em madeira do navio sejam
desmanteladas e lançadas à fornalha. Quando, afinal, o Henrietta chega às Ilhas
Britânicas, só lhe restam o casco, a caldeira e máquina a vapor.
A ideia de um navio que vai sendo desmantelado, para que seus
pedaços sejam usados como combustível que o mantém em movimento, propicia
excelente metáfora para perceber com mais clareza o que hoje vem ocorrendo no
país. Ajuda a realçar o que há de mais errado na forma inconsequente com que a
presidente Dilma Rousseff vem tentando assegurar sua reeleição a todo custo, em
frenético vale-tudo.
Não há espaço aqui para um balanço de tudo o que já foi
desmantelado para avivar a fornalha da reeleição. Mas uma lista curta teria de
incluir o controle da inflação, a credibilidade do Banco Central e
previsibilidade da política fiscal. Num quadro em que o dispêndio público
continua a mostrar rápida expansão, já não se tem mais ideia do que será o
resultado fiscal de 2013, deixado agora ao sabor de pacotes de desoneração
anunciados de improviso, a cada mês, em desesperada tentativa de mascarar a
inflação com medidas que implicam inflação mais alta no futuro.
Merecem ainda destaque o abandono cada vez mais escancarado da
ideia de realismo tarifário — como bem ilustram a insistência na política de
preços de derivados de petróleo — e a decisão populista de não repassar, aos
consumidores, o custo mais alto da energia elétrica proveniente das térmicas. E
há, também, outras conquistas valiosas, como a solidez dos bancos federais,
sendo consumidas na fornalha da reeleição. A inconsequência na gestão da
Petrobras e do pré-sal não pode deixar de ser mencionada. Mas tem mais a ver
com o vale-tudo anterior, que marcou a travessia do biênio eleitoral de
2009-2010.
Faltam hoje 560 dias para o segundo turno das eleições
presidenciais. Uma travessia de 80 semanas. E ainda há muito o que queimar a
bordo. Mas em que estado estará o nosso Henrietta no final de outubro do ano
que vem?
Fonte: O Globo
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